2020/10/07

Dia 2497


A porta bateu, ela entrou. Eu ouvia algum rock antigo dos anos 80/90 no rádio baixinho com letras que falavam de amor e segredos. O cheiro dela invadiu o carro e sem dizer uma palavra eu me apaixonei pela primeira vez, outra vez.

Eu pensava em tirar a roupa dela, eu pensava muito em tirar a roupa dela. Mas eu não conseguiria despir ela por inteiro sem antes ter despido toda sua alma. Absorver tudo que fosse medo, insegurança, raiva, mágoa e ressentimento que fosse dela em mim e transformar tudo isso em amor... Carinho. E foi nessa hora que percebi que havia me apaixonado pela segunda vez, outra vez.

Ela aumentou o som, olhou para mim e sorriu. O foda é quando ela sorri pra mim. Ela me ganha sempre. Nem conhecia a música mas depois de ouvir o refrão duas vezes, tentou continuar na terceira fazendo a segunda voz. E entre a primeira, segunda e terceira letra musical eu percebi que foi nesse momento que me apaixonei pela terceira vez, outra vez.

Em casa, troca de roupa e da risada. Prende o cabelo, deita no sofá e joga as pernas em cima das minhas. Tua voz, teu cheiro, faz tua presença ser morada. Faz piada, joga almofada, fica irritada, faz birra, pirraça, graça de novo. E infinitas vezes eu projetei ela na minha imaginação. E ai me pergunto, onde esta você agora além de dentro de mim? Essa foi a quarta vez, outra vez.

Ela respira no meu ouvido, sussurra baixinho que esta tudo bem e da pra perceber que ela fala sorrindo enquanto a gente se mexe juntinho. Ela aperta as mãos nas minhas costas, mas me abraça cheia de carinho. Ela transborda vontade, me afasta pra olhar no olho mas as pernas me puxam pra dentro dela de novo. Ela me beija, me beija e sorri. E esse é o gesto de amor mais bonito que eu já senti. Essa foi a primeira vez, outra vez.

2020/10/06

Dia 2496



Esse é grito seco, um pedido de socorro a todos aqueles que podem me ouvir. Um apelo simples mas verdadeiro. Mas lembrem-se, uma lágrima já começou com um sorriso. E é exatamente assim que começo esse texto: Sorrindo.

Foi muito, muito rápido. A luz da garagem acendeu, a porta o carro bateu. O motor ligou e logo em seguida o farol fechou. Eu não vi o farol fechar. Eu juro por Deus que eu não vi. Depois o silêncio, o vidro quebrado e a fumaça. É sempre um clichê de filme americano dizer que a gente vê a vida inteira passar diante dos olhos quando vai morrer. E naquela noite, então, eu morri.

Perdi a consciência por alguns segundos, acabei vivendo dois anos preso naquele silêncio. Comprando uma história, minha alma estava à venda. Perdi a consciência de novo. Tentei alcançar a vida com as mãos mas ela escorregou, passou entre meus dedos devagar. Eu acordei, vi o céu mais azul da minha vida ser o telhado do mundo inteiro. Fiz uma oração e fechei os olhos novamente.

Eu não reconheço mais as pessoas que eu convivo. São todos rostos estranhos e eu não me importo mais. Acho que não consigo amar mais ninguém. Perco a atenção sobre qualquer coisa, o tempo todo. É só mais um e-mail, mais uma ligação, mais um ponto a bater ás 18hs, mais um "débito ou crédito senhor?", mais um boleto, mais planos e planos que nunca saem do papel. Dizemos "é a vida" e essa é a expressão mais triste do mundo.

Hoje no farol não houveram pedidos de desculpas, declarações de amor, um abraço apertado, um beijo apaixonado, um carinho nos cabelos, uma gargalhada alta no meio do domingo entediado. Não houve tempo. E eu não consegui comprar mais. 

Ás vezes tudo que a gente precisa é um tempo simples, um gesto honesto cheio de querer. Ás vezes tudo que a gente precisa é um "ouvi essa música e lembrei de você", ou "vamos dar uma volta?" e ainda "levanta dessa cama, olha esse dia". Ás vezes tudo que a gente precisa é ouvir uma música do Charlie Brown, assistir um filme que revire nossas ideais e discuta sobre a imensidão do universo. Conversar sobre qualquer coisa sem sentido só pra fazer rir. Ilustrar o capitão gancho e as outras coisas. Tocar violão sem saber tocar, usar uma guitarra imaginária e um microfone para uma plateia de cem mil pessoas que não estão lá. Ás vezes tudo que a gente precisa é de companhia.

Hoje, um relógio parou e uma lágrima caiu.