2020/07/15

Dia 2485

Eu cresci vendo minha mãe fazer companhia para o meu pai, sempre. Quase todo dia eu presenciava a mesma cena, quando era perto da hora dele chegar do trabalho ela preparava a janta e tentava deixar tudo em ordem mesmo sendo difícil com 4 filhos em uma casa de três cômodos. Ele chamava no portão e eu era o primeiro a correr. Ela vinha atrás com as chaves. Sempre tinha uma camisa xadrez acompanhada da cara de cansado dele. Uma bolsa que cheirava a óleo de motor de caminhão com graxa e dentro a velha marmita. Ele fazia um carinho estranho na minha cabeça e dava um beijo na minha mãe. Era do tipo que não sabia se expressar direito. Meu pai estava sempre cansado, acordava na madrugada e trabalhava pesado o dia inteiro. Mas mesmo assim a minha mãe ficava feliz quando ele chegava, dava pra notar. Quando já era o final do dia e cada um de nós já estava caindo de sono um pra cada lado, minha mãe passava um cafezinho fresco pra ele e conversavam um pouco enquanto ela lavava a louça antes de irem deitar.
Naquele tempo eu não entendia que aquilo era amor. Mesmo no fim, antes dele morrer minha mãe nunca saiu do lado dele. Mesmo com os muitos defeitos que ele tinha, ela nunca foi embora. Mesmo com as brigas, desentendimentos e discussões, ela nunca partiu. Eu nunca vi nenhuma mulher igual minha mãe e a admiro muito por isso, embora não consiga expressar tanto quanto gostaria. Sempre foi muito inteligente e era bancária antes de decidir ter filhos. Abandonou tudo para fazer café no fim do dia ouvindo um breve relato de como tinha sido o dia do meu pai. Naquele tempo eu não entendia que aquilo era amor.
Fazem mais de dezoito anos que meu pai morreu de câncer. Até hoje quando visito minha mãe, ela comenta algo sobre ele cheio de carinho e saudade na voz. E até hoje, ela nunca procurou mais ninguém. Diz que esta esperando ele, isso porque ela não tinha nem quarenta anos quando ele se foi. A gente não sabe quando o relógio dela vai parar e pra ela não interessa. Ela vai continuar esperando sozinha para estar junto dele. Meu pai foi e é o grande amor da vida da minha mãe. E até hoje eu não entendi que isso... Isso é amor.
A gente já conhece a história, mas lê de novo esperando que o personagem tenha amadurecido. E olha que estou falando agora de mim mesmo. Eu tentei desde meu primeiro relacionamento fazer com que cada mulher que esteve comigo fosse o grande amor da minha vida. Algumas foram, outras não. Algumas por culpa minha, outras não. E hoje estou eu aqui, toda manhã pedindo os 6 pãezinhos mais brancos do cesto porque ela gosta assim. Passando um café fresco para acompanhar. Talvez essa seja minha maneira de dizer "Bom dia, eu te amo" todos os dias porque assim como meu pai, eu também não sei me expressar direito. Eu sabia, antes. E agora nesse momento poderia dizer que a vida me deixou mais duro com o tempo ou, meus relacionamentos passados que tiraram essa gentileza e carinho de mim. Mas não, foi apenas eu mesmo que fui enrijecendo com o tempo e congelando partes bonitas que eu tinha. E porque, né? Que direito eu tinha de diminuir o cuidado e atenção no segundo relacionamento quanto ao primeiro? Ou ao terceiro? Ou ao último? Que direito eu tenho de revogar algo que ás vezes nem eu mesmo dou?
Foi nessa parte que eu entendi que a minha boca ficou virgem de sorrisos. Que meus braços não estavam amarrados e eu poderia abraçar mais. Que eu tinha o direito sim de reclamar sobre meu dia no trabalho mas no fim deveria perguntar "mas como foi o seu dia?". A gente esquece dessas coisas. Se acostuma com a presença do outro e isso é errado. Todos nós estamos nos recuperando de algo. Só existe o agora. Porque quando o outro não pode estar mais aqui, o que sobra? -A saudade. E a conta da saudade, quem é que paga?

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